Eu Não Sou um Amansador de Cavalos

Lucas C. J.
7 min readDec 12, 2020

Todo o cais desaparecia quando vinha a bruma espumosa. A desta ocasião, como bem notou Fradúbio depois, recontando a história para seus sobrinhos, não havia se insinuado por meio de augúrios ou sinais — chegou espreitosa como as onças e os amores, e imensa como as neves, deitando no invisível toda sorte de navios e trabalhadores e marujos e à-toas. Um amontoado de gente que estava perto do escritório da alfândega, ao lado dum mendigo que havia amanhecido com a cara virada do avesso por conta de murros e um balaústre pelo jeito, já se havia arrumado dentro dos cafezinhos, lojinhas, toldos riscados que faziam sombra às vitrines esfumaçadas.

Nesta manhã Fradúbio havia decidido não abrir o seu comércio, uma espécie de mercearia misturada com apotecário e também um lugar para se fazer as tais tatuagens que se popularizaram entre os marinheiros nessa época. As gentes aí já estavam ateístas, sem acreditar no farfalhar invisível das asas dos deuses e no cálculo das vontades estelares. Mas Fradúbio ainda guardava, apesar do cinismo das idades, algumas superstições passadas pela sua bisavó, mulher de fala estrepitosa e um pouco doidinha já pelo final da vida. Guardou na memória algumas histórias que falavam de grandes astúcias que se passaram em montes frondosos para lá do mundo, no outro lado, entre deuses e heróis, princesas e potestades. Vendo aquele sem fim de nuvem que baixava por ali pesada feito um muro, enrolou-se num cobertor de lã e acendeu seu cachimbo com tabaco achocolatado e decidiu nem trabalhar, nem nada. Morava no andar acima da lojinha, sozinho, num quarto repleto de ostras, folhetins e fogos-do-mar que os marinheiros seus amigos se lembravam de trazer. Coisa boa isso não é, pensou. Isso aí não vai dar certo.

Estava assim, meio lânguido e derramado, quando ouviu uma bateção na porta lá embaixo, apressada mas firme. Descortinou a janela com sujeira encrustada nas bordas e olhou para fora, para o cais. O vidro estava embaçado feito o olho dum cachorro cego e um pouco amarronzado francamente, mas deu para ver um naviozão arrojado, atracado logo ali, que antes não vira. Não estava parado lá quando olhou atentamente para o descer da neblina, quando ela começou a regaçar com as coisas todas que os marujos estavam planejando. Era feito duma madeira escura que não era comum por aqueles lados, e tinha uma vela enorme e branca, sem desenho, insígnia, escudo nem nada. Depois olhou para a calçada: uma sombra preta estava parada diante da sua porta, feia feito o demônio, respirando em baforadas de fumaça no frio.

Meteu um capotão por entre os braços, pegou seu molho de chaves e foi para baixo, para encontrar com a sombra dos diabos que veio até ele numa bruma encantada. Quando abriu a porta, uma lufada de vento fresco trouxe o cheiro salgado de mar, uns barulhos de cavalos trotando, uma conversinha furada de ali perto, a luzinha aquosa que atravessava o céu. Fradúbio já estava um tanto contrariado, primeiro porque não era homem de gostar de trabalhar; segundo porque o sujeito vinha até ele com as saliências dos ardilosos e dos exilados, o tipinho que não durava muito tempo por ali: ou terminava com a cara do avesso, ou davam um jeito de sumir com ele, no serão da noite, em passos de veludo.

— Quer o quê? — perguntou Fradúbio com rispidez para mostrar que não estava hoje para conversinha mole.

— O senhor é o Fradúbio tatuador? — disse o vulto numa fala meio falhada, como se tivesse muito pigarro para cuspir.

— Eu mesmo — respondeu Fradúbio.

— Posso entrar?

Dentro da casa, sem o esbranquiçamento da atmosfera ao seu redor, o homem perdia muito de sua cadência de diabo — estava ali reenquadrado nas dimensões humanas, triviais, de um velhote de cabelos longos e úmidos, sobrancelhas grossas, a barba um pouco por fazer. Fradúbio concluiu logo que tratava-se de um peregrino distante. Suas roupas eram estranhas, mais apertadas do que o comum, e sua fala carregava alguma substância dos sotaques da Dalmácia Branca, das ilhas Dístricas ou qualquer lugar lá para onde as inteligências não se chegam.

Enquanto acendia uns lampiões e puxava uma cadeira — agora, diante de um ser humano, sentia um pouco de culpa pela rispidez — o peregrino desatou a falar vagamente distraído, olhando uns punhados de cocções de ervas e destilamentos diversos:

— Sabe, eu vim até você por indicação de um amansador de cavalos que eu conheci no continente de Capodístria, em um desfiladeiro mal assombrado. Ele levantou a camisa e me mostrou uma tatuagem, disse que foi você o artesão. No desenho tinha um sujeito enforcado, dava pra ver os gomos da corda e tudo. Perguntei o porquê da tatuagem. Ele me falou: ‘Aquele que amansa cavalos consegue amansar qualquer coisa, até a si mesmo. Aquele que enlaça cavalos consegue enlaçar qualquer coisa, até a si mesmo’. Aí me deu o seu endereço e aqui estou. Quero fazer uma tatuagem que mostre um olho rasgado, e de dentro dele sai uma pomba. Acima, uma lua; abaixo, um sol. Eu sou um marinheiro e vou mostrar essa tatuagem para todos os cantos, mesmo os que você ainda não conhece.

Fradúbio foi pego de surpresa pela verborragia e pelo hálito pungente do peregrino. Tinha algo de adstringente, algo de fermentado, algo de doce também. O encontro era certamente inusitado. No fim, só conseguiu pronunciar:

— Eu não sou um amansador de cavalos. Não tenho notícias disso.

A essa hora o velho já havia retirado a camisa para revelar umas costas arqueadas, cortada pelos montículos da coluna retorcida como uma cobra fossilizada. Sua pele era velha e demonstrava uns sinais de luta, além de demonstrar uma camada fina de óleo que reluzia o tremelique dos lampiões. Fradúbio não queria trabalhar, mas teve a intuição de que não seria um cliente fácil de se recusar. Volte amanhã, talvez? Mas isso significaria mais um dia com o naviozão preto trazendo esta nuvarada para o cais dos pescadores. O navio, o clima e o velho pareciam estar, em sua imaginação, indecifravelmente interligados, como se estivessem entrelaçados pela mesma corda de gomos do amansador de cavalos. Quaisquer que tenham sido as suas justificativas interiores (Fradúbio contaria esta mesma história, mais tarde, com variações surpreendentes), o fato é que enfiou um talo de tabaco na boca, perto da gengiva, e enfiou-se no trabalho.

Enquanto a agulha penetrava na pele do velho, pequenas gotículas de óleo ou pus saíam, o que fez Fradubio quase vomitar umas três vezes. Durante todo este período o forasteiro rememorou histórias venturosas, quase certamente inventadas, que envolviam grandes números de inimigos, exércitos de piratas, ardis mágicos, objetos encantados, palácios marítimos e criaturas sulfurosas com apetites insondáveis por almas humanas. Delongou-se, também, numa história que envolvia um palácio feito de pérolas que ficava invisível todas as noites, e amanhecia num lugar diferente, de modo que o seu príncipe era um apátrida perpétuo, renegado da terra, estrangeirado de si mesmo.

Quando Fradúbio concluiu o trabalho, percebeu que ficaria ali ouvindo as histórias excêntricas por mais tempo se tivesse a companhia remissiva dum copão de cerveja e mais uns três marujos destrambelhados. Ele mostrou o resultado num espelho, que o velhote aprovou enfaticamente. Fradúbio disse que faria um desconto especial, em função da recomendação do amansador de cavalos, e secretamente por causa do gozo ao ouvir toda aquela sorte de historinhas.

— Não, não quero desconto. Quero só a compreensão: não te pagarei em dinheiro.

Retirou, de seu bolso, uma pequena bola que cabia com folga na palma de sua mão. Era branca e anuviada como as espumas oceânicas. Segurou-a com dois dedos, olhou atentamente para Fradúbio e disse:

— Esse é o olho dum peixe mágico que eu peguei nas grandes geleiras de Obersdorf, quando caçava os bichos fumegantes e sarçosos que aquela gente chama de wisp. Coloque-o debaixo do seu travesseiro, e na terceira noite sua visão vai se aprimorar de tal modo que você enxergará venturas que os outros homens não vêem.

O homem então saiu para o meio da bruma, desaparecido, deixando de rastro apenas o seu cheiro, que Fradubio depois tentou recriar por meio de uma cocção de algas, vinagre de ostras e fermentação de arroz. (Não conseguiu). Fradubio depois disse que ficou desnorteado e foi deitar, de modo que não viu partir o naviozão obscuro. Depois, quando olhou para fora, já não estava mais lá. Mais para o fim do dia, saiu e foi ter com o dono do bar a umas quadras de distância. Perguntou do navio preto que ficou atracado por algumas horas logo ali. O sujeito lhe disse que viu, bem, quando ia embora: sua vela, balangando contra o vento, mostrava um olho cortado e de onde saía uma pomba. Acima, uma lua; e abaixo, um sol. Fradúbio perguntou o nome do capitão.

— Não tem capitão. É um navio encantado que anda por aí amolando os outros marinheiros por conta do medo que sentem dele. Algum mecanismo invisível o propulsiona para onde lhe der na veneta. Quando chega, traz essa cortina de neblina; e quando sai a névoa ainda perdura por alguns dias. É um traste!

Fradúbio não sabia interpretar nada do que lhe acontecera, do que o sujeito lhe dissera. Depois de três dias, o céu havia limpado, e Fradúbio pela primeira vez derrubou um frasco por descuido, que se espatifou no chão. Teve dificuldade de enxergar os cacos e para onde foram. Alguns dias depois, estava completamente cego e já não podia trabalhar. Dormiu esse tempo todo com o olho de peixe debaixo do travesseiro (acho que ainda dorme). E relata que o grande presente, o grande pagamento do forasteiro, foi ter lhe emprestado seus próprios olhos, para que de noite, quando sonhoso, vivenciasse todas aquelas histórias e mais; e visitasse lugares distantes pelos quatro cantos do mundo: geleiras abissais, cavernas buriladas em palácios, desertos brilhosos e desfiladeiros enigmáticos. Hoje conta todas essas histórias para todos que desejam ouvir, e recolhe seus trocados que recebe de esmola, e toda noite dorme com o ríctus daqueles que morrem felizes.

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