Hassan de Basra e a Terrível Bingbing

Lucas C. J.
4 min readFeb 21, 2021

Quando Hassan Abdallah de Basra decidiu deixar a sua carreira lucrativa como traficante de armas, o seu círculo mais imediato de convivas acreditou se tratar de um prenúncio para grandes escuridões. Uma empregada inventou a fofoca indesejável de que Hassan fora visitado em sonho pelo fantasma do Profeta. Uma outra empregada disse que era apenas um taumaturgo esquisito. A segunda empregada aposentou-se precocemente entre pedras numa masmorra.

A constrangedora verdade era que Hassan vira em sua profissão a incapacidade completa de impressionar o seu pai. Seu irmão mais novo, Hussein, criava cavalos para a Rainha da Inglaterra. O seu primo Mustafa havia se casado com uma atriz paquistanesa que encantou o mundo contracenando com um macaco em uma comédia romântica. Hassan, no máximo, podia se orgulhar do sistema logístico empregado na entrega de armas durante a Guerra da Ucrânia. Não era o tipo de coisa que você contava para os outros num jantar, muito menos se a Rainha da Inglaterra estivesse presente.

Hassan viu então uma nova oportunidade, muito mais sedutora, igualmente lucrativa, e que talvez providenciasse a tão sonhada aprovação paterna. Conversou com alguns contatos importantes e com um sujeito que no final só queria lhe vender herbalife. Traçou um plano, emagreceu seis quilos (por conta da herbalife) e aos poucos montou a sua equipe: Hassan seria um assaltante de cassinos.

Hassan havia desperdiçado uns bons anos gastando o dinheiro de seu pai em cassinos no mundo todo. Em um salão de poker genovês, conheceu a sua primeira esposa, paixão de sua vida. Em um salão de blackjack tailandês, mandou matá-la por ficar de conversinha com outro homem. A vida de Hassan era bruta e brilhante como os diamantes. De toda forma, Hassan sabia como os cassinos funcionavam pois para ele eram como uma segunda casa. Em Basra, ao lado de sua casa, ele havia construído um cassino e morava lá de vez em quando.

A estratégia era infalível: por meio de muita observação, percebeu que os bilionários que gastavam milhões nas mesas não eram revistados. Então Hassan só devia criar uma distração perdendo milhões de dólares enquanto a sua equipe entrava pelos fundos (“muito importante, não entrar pela frente!” ele dizia, batendo as falanges gordinhas na mesa) e assaltava os cofres. Alguém perguntou “Hassan, mas e se a gente roubar menos dinheiro do que você gastou?”, no que Hassan respondeu: “Babai no precisa saber disso, eh… Hassan arrombador de cassinos mesmo jeito eh…”.

O maior problema, Hassan calculou, seria a abertura dos cofres. Por meio de um ex-colega de turma, um criador de papagaios do Caribe, quisera o destino que Hassan chegasse até a terrível Bingbing, uma especialista em explosivos nascida na China e criada em Jaú, no interior de São Paulo.

Bingbing, a princípio, não falou nada. Hassan ficou sentado numa praça na frente do hipermercado Extra, olhando para os seus olhinhos sinuosos e algo sugestivos, pensando nesta indelével grandiosidade oriental que fabricam aqueles que nunca foram para o oriente. “Então, doi milhão, aceita proposta Hassan?”, disse novamente, aproximando seu nariz aquilino da pele leitosa de Bingbing. Sem dizer uma palavra, a jovem moça retirou um peido-de-véia do bolso e jogou no chão. Então entregou um papelzinho que dizia: “uma bombinha = sim; duas bombinhas = não” . Hassan sorriu e acreditou estar inteiramente apaixonado.

Como acontece com os homens apaixonados, Hassan parou de pensar em cassinos, dinheiro, e também parou de tentar vender herbalife para os seus conhecidos. Só pensava em Bingbing, só procurava Bingbing. Mandou espiões descobrirem pistas de seu passado. Só descobriu que Bingbing fora expulsa da China aos quatro anos depois de incendiar a gravata do Presidente. De resto, a sua história ancestral permanecia envolta nos mantos do esquecimento. Hassan pensou nessa frase e sentiu um tremelique, e acreditou estar se tornando um poeta.

Hassan comprou para Bingbing um castelinho no Luxemburgo e mandou decorá-lo um decorador homossexual (na época, eram os mais caros). Bingbing decidiu demoli-lo com cento e seis quilos de explosivos, embora achasse que daria para fazê-lo com noventa. Hassan comprou-lhe uma fazenda na Argentina, que também foi destruída em uma grande explosão que fez Bingbing derramar uma lágrima de felicidade. Sua vida nunca fora tão divertida como agora.

Hassan não entendia nada. Bingbing não ajudava, pois era muda, completamente muda. “Muda e casta como as mulheres viúvas”, Hassan um dia a descreveu para um grupo de amigos, antes de oferecer-lhes herbalife (na época, a paixão já tinha minguado um pouco). Para Bingbing, entretanto, ela não era silenciosa: os estouros e explosões eram as suas cordas vocais em expansão, o fogaréu era o seu sentimento incendiado.

A falta de palavras não implicava de todo em falta de sensibilidade. Bingbing via-se como uma esteta, uma artista do que há de mais fugaz. Suas obras não duravam três ou quatro segundos — e, no entanto, vivia inteiramente para elas, dedicada à sua arte e casada com os artifícios de seu labor.

Pouco a pouco, Hassan passou a olhar para outras mulheres, dessas que não carregavam explosivos em seus bolsos. Começou a desconfiar, também, que Bingbing estava de olho em um milionário tailandês. De toda forma, o arrebatamento inicial deu lugar a uma indiferença tolerante. No fim das contas, só importava arrombar os cofres de um cassino e ganhar a admiração de seu pai.

No dia do roubo, Hassan se encontrou com Bingbing e fez um último apelo. “Um beijin só…”, dizia, apontando com seus dedos gordos para a própria face. Bingbing repousou a mão nas bochecha de Hassan e calmamente estourou um peido-de-véia entre os dedos. Hassan levou um susto e começou os trabalhos.

Precisaria de muita poesia para descrever este roubo espetacular. As tensões, distrações, entradas e saídas de cena de todos os membros da equipe poderiam lembrar um ballet que Hassan viu em 1997, quando se apaixonou pela mesma bailarina que o Paulo Francis. Desnecessário dizer que Bingbing, a terrível, desempenhou a sua arte com fidedignidade: com o aperto de um botão, as portas pesadas do cofre se abriram e revelaram as montanhas de riquezas indizíveis. Lá longe, numa mesa de poker, Hassan bebia seu último martini antes de ser transformado em gelatina dependurada no lustre genovês.

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